19 de maio de 2011

O segredo da galinha (Tiago de Oliveira)

Eu sempre achei que minha avó tinha algum defeito na cabeça, só não sabia o qual. Uma vez encasquetou com uma galinha na estante dos livros. Uma galinha de porcelana, branca e preta. Ela se balançava na cadeira de balanço de olho na galinha e a galinha de olho nela. Teve vontade de rumá-la ao chão de tanta raiva da danada, de olhos apertados a fitá-la. Era sentar para o ponto de cruz que a bicha se eriçava. Só faltava cacarejar. Se livra dessa peste, Catiana, ou dou um trato – rezingava rouca. Mas minha mãe, assim como eu, não via nada demais naquele bibelô, a não ser o fato de que estava velho e remendado. Passava um tempo e aquilo da minha avó passava. Aí andava pela casa como se nem percebesse a galinha. Até brincar de boneca brincava. Depois era um tal de limpar os cantos. Um tal de passar pano, de lavar banheiro. Minha mãe se irritava com medo de ela se arrebentar numa queda. Mas minha avó era danada demais. Parecia menina querendo ajudar a mãe na limpeza da casa. Embora não tivesse mãe, embora não fosse mais filha.

Era, de uma hora pra outra, que inventava de bordar as toalhas. Primeiro as de banho, depois as de mesa, depois nossas roupas. Tirava tudo dos armários. Minha mãe ficava azeda. E eu ria, só ria, mas nada entendia. Quando colocava tudo encima do colo e começava a tecer letras e animais, ela parecia uma mulher velha, de cara fechada e olhar apertado sobre o tecido e a agulha. Nada que lhe fosse perguntado era respondido. Minha mãe, esquecida como ela só, não tirava a galinha do lugar. Ela era quem não entendia nada. E minha avó, acho que medrosa, não ousava tocá-la. De longe, dava língua e dedo, xingava. Só uma vez, quando se encheu de coragem, arremessou o novo testamento, mas errou a mira. Podem não acreditar, mas, nessa hora, eu jurei ter visto a galinha rolar sobre os livros dando gargalhadas ruidosas. Não seria louco de dizer a minha mãe. Mas depois de um tempo, a galinha só enganava a ela. Eu e minha avó guardávamos cada um em sua solidão, o segredo da galinha. Só nós sabíamos que a galinha era a encrenqueira, que era ela quem primeiro espichava os olhos, só pra chatear.

Chegou um tempo em que minha avó, já fraca e de ossos que eram puro pó, mal agüentava o senta-levanta da cadeira, nem forças tinha pra outra vez tentar dar um jeito naquele demônio galináceo. Mas eu, já crescido, vi minha paciência ir embora com os anos. Foi quando uma vez ela resolveu ser meu algoz. Me encarava de um modo esquisito, com fúria no olhar miúdo. Desdenhava, pintava e bordava. Mas com comigo o buraco era mais embaixo. Quando nem mesmo eu esperava peguei a galinha com uma só mão e numa só vez, taquei-a contra o chão com toda força. Ela se repartiu em pedacinhos, ficou que era só poeira. Não sabia o que era bico, o que era asa, o que era olho. Nesse dia, vi brotar meio sorriso na boca murcha da minha avó que logo logo começou a se balançar na cadeira e a cantarolar baixinho. Ria sozinha pela casa como quem ria pra alguém. Era um tal de perguntar pelas bonecas e de tagarelar sem fim. Todos na casa estranhavam minha avó. No bairro a chamavam de doida. Mas há muito eu sei que minha avó não era louca, era menina cuja vida se tornou um inferno por culpa daquela galinha esquisita.

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